Quando uma pauta cruza o caminho do repórter

A sessão das 21h do filme de terror “A Entidade” estava lotada no último dia 4 em uma das salas do Cinemark do shopping SP Market.

As cenas aterrorizantes me fizeram pegar a jaqueta do meu namorado para usar como cobertor para tapar os olhos. Dizem que quando a pessoa esta apavorada e usa algo para cobrir o corpo até a nuca uma camada de proteção se forma e nenhum mal pode acontecer =). Foi assim que eu fiquei quase o filme inteiro, me contorcendo de um lado a outro diante das cenas fortíssimas de pessoas sendo esquartejadas, degoladas e afogadas. Veja só:

Eis que um barulho vindo de uma das fileiras da frente toma a nossa atenção. Uma criança estava na sala assistindo o mesmo filme. A indignação não poderia ser maior. Muito mais do que atrapalhar quem estava compenetrado no filme, aquela criança não poderia estar ali vendo aquelas cenas fortíssimas. A classificação indicativa do filme era de 14 anos.

Depois de observar o comportamento da criança em boa parte do filme, eu saí da sala inquieta. Não sabia até que ponto uma criança pequena, a princípio parecia ter 4 anos, poderia ser afetada por aquelas cenas. Pronto! Meus instintos jornalísticos vieram à tona. Eu tinha uma pauta!

Com respeito e delicadeza, perguntei a mãe daquela criança como ela tinha conseguido entrar no cinema. Ela respondeu que simplesmente passou sem ser barrada. Também perguntei a idade da criança. O menino fofíssimo tinha 2 anos. Quando mal terminei de perguntar o motivo que ela tinha trazido a criança para ver um filme tão forte… a mãe desviou o assunto e se dirigiu ao caixa do estacionamento.

Sai com a sensação de que tinha uma boa pauta! Para ter certeza da minha intuição fui em busca dos departamentos de psicologia da USP e da PUC-SP. Eles me encaminharam para duas especialistas na área de criança, uma delas, inclusive, vem estudando o impacto da televisão nos pequenos. As duas profissionais classificaram a situação como “grave”.

Entrei em contato com o Cinemark e com o Ministério da Justiça, que é responsável por fazer a classificação dos filmes.

Depois de toda a apuração, tive 100% de certeza que realmente eu tinha uma boa pauta no sentido não de criminalizar ninguém, mas de passar a informação aos pais que em muitos casos, por falta de informação, não sabem que uma criança de 2 anos pode sim ser influenciada pelo que vivencia, pelo que vê na televisão ou no cinema. “É uma discussão que pouco se faz no Brasil”, disse uma das especialistas.

Levei a pauta com convicção para o chefe de reportagem…

Saiu! Está em Coti, que é como chamamos carinhosamente a editoria Cotidiano da Folha. Dá para ler clicando aqui.

Às vezes, as pautas surgem em situações que você não espera. Uma conversa num happy hour pode te levar a uma pauta, algo que te deixe inquieto ou o indignado pode ser um sinal. Seguindo para o trabalho às 7h da manhã e você vê um trânsito atípico para o horário fique atento, pergunte o que é… pode ser um tráfego intenso por excesso de veículos mesmo ou pode ser um acidente (exemplo verídico aqui). É a nossa profissão, temos que ser observadores, curiosos e questionadores, se um dia perdermos essas qualidades estará na hora de mudarmos de profissão.