O dia em que pautei os principais jornais impressos e televisivos do país

Porque o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade. Quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la.

Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte.

É Gabriel Garcia Marquez… a gente que entrou no jornalismo para mudar o mundo e há quem duvide desse poder, eu nunca duvidei pelo menos. Aquela reportagem de poucas linhas pode ter feito a diferença na vida de alguém, que fez uso daquele conteúdo para transformar a vida de mais outras pessoas e assim por diante. Creio nos leitores, telespectadores e ouvintes que veem no bom jornalismo uma forma de emancipação.

Foi assim que aconteceu com a minha primeira reportagem/furo de grande repercussão na Folha. Polícia paulista cria cadastro de pedófilos, o primeiro do Brasil. Fiquei sabendo do tamanho da repercussão por conta de um e-mail do chefe de reportagem de “Cotidiano”. A reportagem pautou os principais jornais impressos e televisivos do país. Rede Globo, Estadão, Record, Band, O Globo… todos foram atrás da pauta. Passei a receber inúmeras mensagens de ativistas dos Direitos Humanos a respeito.

FOLHA DE S.PAULO - PEDOFILIA - ADRIANA FARIAS

Descobri a pauta de xereta que sou. Durante um plantão em “Cotidiano”, falando com pessoas ligadas à Secretaria de Segurança Pública, descobri uma delegada que trabalhava com pedofilia e que interrogava as crianças em uma brinquedoteca –para os pequenos se sentirem mais confortáveis ao denunciar o abuso sexual.

Como temas sociais sempre me sensibilizaram muito fiquei com o nome daquela delegada na cabeça. Mandei um e-mail para mim mesma me lembrando de ligar para ela.

Semanas se passaram e aquele e-mail se perdeu dentre tantos outros. No dia que comecei a trabalhar no TV Folha, até por eu ter um currículo em televisão, me lembrei da tal delegada e da tal brinquedoteca, porque pensei nas imagens que aquele espaço lúdico proporcionaria.

Liguei para a delegada. No final da conversa eis que ela me diz: “pois é a delegacia vai completar dois anos, e ela é tão desconhecida e a gente faz um papel tão importante. Estamos até criando um banco de dados para cadastrar os pedófilos do Estado”. Fiquei extremamente inquieta com aquela informação, fiz algumas pesquisas e vi que realmente eu tinha um furo para “Cotidiano”.

Com outro enfoque a reportagem entrou no programa TV Folha, onde tenho feito trabalhos em produção e reportagem. ‘TV Folha’ traz vítimas de pedofilia; violência contra menores cresce no país.

Entrevistei vítimas de pedofilia. Chorei com uma delas que é mãe. A investigação do caso estava parada na delegacia há um ano. O inquérito policial seguiu para o Fórum dois dias depois que a Folha pediu posicionamento e a reportagem foi veiculada tanto no jornal quanto na TV. Corri para dar a notícia para minha entrevistada. Era Dia das Mães.

Nas semanas seguintes, uma leitora, comovida com a reportagem, entrou em contato com a Folha querendo ajudar a família da vítima.

Transformar o mundo para mim é isso. É de tijolo em tijolo, de reportagem em reportagem. Às vezes falta cimento para dar solidez, o muro parece que vai ruir, você não tem certeza se deveria ter ficado com aquele tipo de tijolo que te dava segurança e que você já experimentou diversas vezes ou parte para um novo, que proporcione muros mais vibrantes, mas também incertos.

Tragédia no Sul: a cobertura jornalística no 6º maior desastre da história do Brasil

Às 7h da manhã chego na redação do jornal com um alerta da repórter da madrugada: “Teve um incêndio feio em uma casa noturna lá no RS, mas as informações ainda não batem. Os jornais locais estão falando em dezenas de mortos. Já publiquei o texto com algumas informações básicas que consegui apurar”.

Recebo a notícia com preocupação, mas sem imaginar a gravidade do que viria a ser aquele “incêndio feio”. O outro repórter chega logo em seguida e já menciona que ouviu falar sobre um incêndio numa boate, mas que ainda não tinham o número de vítimas.

A concorrência já disparava números altíssimos ainda não confirmados de pessoas mortas. A repórter da madrugada alerta: “Não vamos dar números que não correspondam com a verdade. A pior coisa que tem é ressuscitar morto”.

Apuramos na Defesa Civil, no Corpo de Bombeiros, na prefeitura, nos hospitais locais e o número de mortos chegava a números espantosos. Ligamos a TV da redação e a Globo News noticiava o incêndio, mas com imagens da CNN.

Diante do cenário que viria a ser pavoroso entro no Facebook, sempre um grande aliado, para checar as manifestações… depois de pesquisar perfis de moradores de Santa Maria (323 km de Porto Alegre), local onde aconteceu o incêndio, encontro uma página da cidade em que várias pessoas se reuniram para comentar o que estava acontecendo. Entre alguns dos comentários na rede estava o de uma menina que procurava desesperadamente pela irmã, que teria ido a tal da boate e estava desaparecida.

Entro em contato com a menina às 7h30 da manhã e, para minha surpresa, ela me responde com os contatos dela. Eufórica, disco o telefone correndo e Gabrieli Toniolo me atende. Desesperada atrás da irmã Leandra, que estaria usando uma saia verde e uma blusa branca, Gabrieli conversava comigo aos prantos. “Estou desesperada, já são 7h30 e até agora a minha irmã não voltou de lá, meu Deus!”, conta já soluçando. Inevitavelmente penso na minha irmã gêmea e as lágrimas tomam os meus olhos em questão de segundos. Tento esconder, mas não consigo. O repórter ao meu lado para de digitar a entrevista que havia feito com um bombeiro e me consola com um olhar.

Gabrieli me conta que uma amiga chamada Michele teria ido junto com a irmã dela na festa e que havia mandado uma mensagem de texto avisando que Leandra estava desaparecida. Pedi o contato da amiga e finalizei a conversa desejando toda a sorte do mundo e que ela iria encontrar a irmã logo logo. O texto saiu -> Família busca estudante desaparecida em boate no RS.

Com o telefone da amiga em mãos me senti como se estivesse com o contato mais valioso que um repórter de São Paulo, que não foi deslocado para Santa Maria, poderia ter naquele momento: o celular de uma sobrevivente do incêndio.

Na terceira ligação, Michele Pereira, 34, me atende. Tentando conter a euforia, me apresento como repórter do jornal e pergunto se ela poderia me contar detalhes sobre o incêndio. Michele está tão eufórica quanto eu, e a preocupação a mantém agitada pelo telefone.

Michele me conta que havia deixado a amiga Leandra no banheiro no momento do incêndio e que ainda estava procurando por ela. Em seguida, pergunto detalhes do que havia provocado o acidente e recebo a frase mais importante: “A banda que estava no palco começou a usar sinalizadores e, de repente, pararam o show e apontaram [o sinalizador] para cima. Aí o teto começou a pegar fogo, estava bem fraquinho, mas em questão de segundos começou a se alastrar”.

Pronto! Estava feita! Ninguém tinha essa informação preciosa às 9h da manhã vinda de uma pessoa que estava exatamente em frente ao palco e viu como tudo aconteceu. -> Vi pessoas sendo pisoteadas tentando sair, diz vítima de incêndio. Furo nos concorrentes de São Paulo.

Estrelismos a parte porque a tragédia não merece, mas a sensação do furo é inerente a qualquer repórter em uma cobertura como essa em que o telefone acaba sendo o único aliado.

Durante esse período de apurar e redigir as matérias, repórteres de todo o jornal já haviam sido contatados para virem o quanto antes para a redação, os mais experientes vieram por espontânea vontade já sabendo da importância do fato.

Todos os jornalistas ajudaram a nossa editoria (Cotidiano) a apurar a tragédia. Repórter de Mundo cuidou da repercussão internacional e o contato com os correspondentes no exterior, o da revista saopaulo ajudou procurando mais personagens e apurando as notícias da rádio gaúcha, repórteres de Poder, Mercado, Esporte e de outras editorais também participaram. Os repórteres de Cotidiano que iam chegando se dividiam na apuração: um ficou encarregado do perfil da cidade de Santa Maria, outro do perfil da banda que estava na boate e assim por diante. Uma repórter nos salvou trazendo comida.

Naquela hora atentos a rádio gaúcha e ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre, recebemos a informação truncada de que seguranças teriam barrado a saída das pessoas que tentavam fugir do fogo e a minha chefia queria essa informação. Penso em ligar novamente para a Michele, talvez ela tivesse essa informação e não teria me passado na primeira entrevista. Ligo na casa dela e a prima atende com a notícia: “Adriana, a Michele não pode falar agora. A família encontrou o corpo da amiga dela dentro do caminhão da Brigada Militar. Ela está em estado de choque. A família está desolada”.

Paro alguns segundos, solto um profundo suspiro e agradeço a informação. Não tive coragem de perguntar mais nada. -> Família identifica corpo de estudante de radiologia de 23 anos. (texto saiu às 11h 57 e teve meio milhão de acessos)

Naquele momento todas as reportagens sobre a tragédia haviam sido feitas por São Paulo. A equipe de correspondentes de Porto Alegre foi deslocada, mas levaria pelo menos 3h para chegar ao local.

Às 13h a redação do maior jornal do país já estava completa, junto com as equipes da fotografia e da infografia. Muito antes disso, a chefia da home já estava em peso na redação “estourando” o site, ou seja, mudando radicalmente as manchetes para as chamadas da tragédia. O domingo havia se transformado em uma segunda-feira.

Os olhares dos jornalistas, fotógrafos e ilustradores do jornal foram tomados por uma sensação profunda de tristeza e horror a cada informação apurada. A reportagem foi publicada no caderno especial de “Cotidiano”, na edição nacional do dia 28, outros trechos das entrevistas saíram na edição São Paulo.  Essa foi a minha primeira cobertura de uma tragédia e, sinceramente, que tenha sido a última.

TRAGÉDIA NO SUL - FOLHA DE S.PAULO

CURIOSIDADE: O The New York Times, um dos jornais mais reconhecidos do mundo, entrou em contato com a chefia do jornal pedindo para falar comigo porque eles queriam o contato dos meus entrevistados. (Vocês dariam? Para quem não quiser se manifestar aqui aceito inboxs no facebook, como sempre!)